Depois de mais de 50 anos lendo e relendo este Livro dos Livros que é Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, ainda me ilumino, se não só com a forma e o estilo, mas também com a sabedoria que o texto entrega, por exemplo, a respeito de ser, estar e conviver no mundo; de ajudar a compreender as lições que isso nos traz; de saber ir atrás do quem das coisas; ou de fazer novas perguntas sobre a condição humana. Foi assim que me dei ao trabalho de nele procurar algo fundamental hoje e desde sempre, antes mesmo das leis mosaicas, representadas na figura acima, ou seja, os desafios da liderança nas organizações, desde entre a Jagunçaria até a NASA, passando pelos sistemas de saúde. A pergunta chave seria: o que faz, de fato, algumas experiências de gestão em saúde serem bem sucedidas, ao contrário de outras, que não chegam a alcançar tal status e desaparecem como por encanto? Qual o papel das lideranças nisso? Como pontos de partida, tomo algumas conclusões e desdobramentos desenvolvidos em minha tese de doutorado na ENSP/Fiocruz, na qual estudei a implementação do Programa Saúde da Família no Brasil.
Neste trabalho, descobri alguns indicativos de implementação bem-sucedida de tal programa de saúde, entre eles: (a) capacidade de tomada de decisões, dada por liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, qualificação técnica e continuidade; (b) qualificação das equipes técnicas, traduzida por acesso a conhecimentos, tradição de discussões, base ideológica, empreendedorismo associado a militância; (c) boas práticas sociais que se traduzem por práticas políticas e administrativas transparentes, efetivas e socialmente aceitáveis, que se estendem bem além do campo da saúde, tendo como substrato ideológico as noções de cidadania, direitos coletivos e responsabilidade pública; (d) articulação externa, ou a prática de um cosmopolitismo político e sanitário; (e) investimento em padrões efetivamente substitutivos dos modelos de atenção, buscando a neutralização da competição e do antagonismo com os elementos estruturais e ideológicos dos velhos regimes de práticas; (f) desenvolvimento de inovações gerenciais ou assistenciais; (g) sustentabilidade em termos financeiros, de estrutura e de processos, mas também nos planos culturais, simbólicos e políticos; (h) efeito espelho: difusão entre pares e outros interlocutores externos, mediante uma pedagogia do exemplo. Seriam coisas um tanto óbvias, mas que não custa nada serem rememoradas.
Mas o tema da liderança merece mais… Se formos aos manuais clássicos veremos que isso implica, entre outras coisas, em capacidade de comunicação; relacionamento com os comandados; consciência de se estar em equipe; transparência e sinceridade; capacidade de ouvir e saber se pronunciar em horas certas – coisas assim. E mais ainda: representar um personagem inspirador – este talvez seja o atributo mais significativo. E foi pensando em tal tipo de ator que fui ao Sertão do Rosa encontrei elementos para fazer pensar sobre tal conceito, através das características pessoais dos três grandes chefes de jagunços que ali comparecem: Medeiro Vaz, Joca Ramiro e Zé Bebelo. É claro que ser chefe e ser líder são coisas distintas, como nos ensinam os manuais, mas isso veremos mais adiante. Mas notem bem: este texto representa tão somente uma elucubração e não tem qualquer pretensão de se acrescentar às teorias vigentes em Administração ou Liderança. É apenas um exercício de escrita, mais um entre muitos possíveis, que minhas repetidas viagens ao Grande Sertão sempre me provocam.
Para os não iniciados, esclareço. Em ordem de aparição no livro (não totalmente cronológica), o primeiro a aparecer é Medeiro Vaz, que não é um chefe de jagunços típico. Ele surge para vingar a morte de seu amigo e compadre Joca Ramiro, este sim, um capo di tutti capi. Zé Bebelo que vem depois, é um quixote iluminista que quer reformar o mundo, inclusive livrando-o de coronéis e figuras associadas, mas que acaba se inserindo no mundo desses, que de inimigos passam a aliados, a partir de certo ponto da narrativa. E mais não direi para não dar spoiler a quem ainda não conhece a obra. Há também Riobaldo, o narrador, que acaba chefe – e com todas as honras – mas que por motivos diversos, particularmente as controvérsias que ele mesmo coloca sobre sua atuação, não fará parte das presentes reflexões.
Faço agora uma comparação entre as práticas e artimanhas de tais chefes jagunços sertanejos na condução de seu mister, na forma como foram concebidas por Guimarães Rosa, certamente influenciado também pelas suas vivências de infância e juventude no mundo sertanejo de sua terra natal, Cordisburgo, e principalmente por sua imaginação. Tento correlacionar isso com alguns dos ritos e princípios que a ciência administrativa contemporânea preconiza, em termos de liderança e trabalho em equipe. O que tem uma coisa a ver com a outra? Como se verá, existem de fato sintonias e aproximações, além de alguns dissensos entre elas, melhor dizendo, entre um mundo e outro, afinal não tão díspares como poderiam parecer, já que são habitados por portadores daquela mesma condição humana, tão óbvia e ao mesmo tempo cabulosa.
Em primeiro lugar, o vigor de um pensamento estratégico, visível, por exemplo, no longo arrodeio que Medeiro Vaz realiza pela passagem através do temível Liso do Sussuarão, em tempo posterior imitado por Riobaldo, quando na condição de chefe. Tal manobra visava pegar os Judas de surpresa, pois que esperavam combate vindo de frente diferente daquela em que finalmente aconteceu. O mesmo se dá quando Zé Bebelo, cercado pelos Hermógenes em uma fazenda abandonada, determina a um dos seus que vá até a cidade mais próxima para chamar nada menos que a polícia, colocando-a no encalço dos inimigos e se safando a tempo e a hora. Há muitos outros sucessos semelhantes no enredo, sendo a batalha final no Tamanduá-Tão uma sequência magistral de manobras de tal natureza, embora tenha custado, ao fim e ao cabo, uma vida preciosa, a de Diadorim.
A capacidade de improvisação e posicionamento diante de uma realidade mutante é outra das caraterísticas das ações dos jagunços. Não só a escapada do cerco referido acima, como as marchas e contramarchas destinadas a confundir perseguidores, são demonstrações de tal manobra. Zé Bebelo, explicitamente, é homenageado por Riobaldo diante de sua astúcia em tal campo, descrita como fruto de saber ser, a cada momento, “diferente em sua autoridade”. Da mesma natureza é a cena do transporte despistado de armas e munições, durante a qual, no lugar chamado Guaravacã do Guaicuí, Riobaldo e Diadorim se reencontram.
Para um chefe jagunço, todavia, a vida não era só muito perigosa, mas muito mais do que isso. A vida no bando era um permanente enfrentamento de riscos, inclusive, na melhor das hipóteses, de perda hierárquica e na pior delas, de morte. Assim, pensamento estratégico, improviso e leitura acurada da realidade de nada valeriam se não trouxessem, ao mesmo tempo, uma correta avaliação de riscos em cada mínimo momento da poiesis jagunça. Além de muita sorte, claro.
Sobre uma certa relativização das hierarquias dentro do bando, um tópico chave da gestão contemporânea, há muitos exemplos. É claro que entre tal tipo de agentes, agindo totalmente fora da lei, isso não poderia ser levado às últimas consequências. Neste aspecto, Medeiro Vaz era um homem mais discreto, relaxando a hierarquia de forma muito ocasional e pontual, de forma determinada, aliás, pelo seu próprio estilo de vida, que fazia dele uma espécie de ermitão. Joca Ramiro tinha por hábito se confraternizar com seus jagunços de baixo escalão, se fazendo respeitar por eles e certamente obtendo com isso informações importantes, além de acumular o respeito que nunca lhe faltou no exercício do comando. Zé Bebelo era mais relaxado, dado seu tipo menos atento a convenções, mas acabou pagando um preço caro por isso, ao perder o posto de chefe para Riobaldo, entre outras razões, pela sua maneira descuidada de agir, mesmo que fosse bastante inteligente algumas vezes.
A carga de simbolismo que os chefes carregavam conscientemente consigo, para difundir em momentos certos, também é digna de menção. Isso envolvia valores como autoridade, valentia, carisma, empatia. A valentia, aliás, se perfazia como um incomensurável valor, mas não era o único. A vida entre o bando, por certo, era permanentemente carregada de variados valores simbólicos, de ampla natureza, por exemplo, exercício da lealdade, amizade, solidariedade, além de outros.
O correto exercício da autoridade era parte de tal carga simbólica, certamente indispensável para manter a coesão e a disciplina em um grupo com tais características. A cena em que um dos jagunços do andar de baixo se espanta com o fato de que alguém tivesse questionado uma decisão de Joca Ramiro é bem um exemplo disso, complementado por Diadorim que vai demonstrar isso com outras palavras, que um valente como aquele chefe só poderia ser uma pessoa de bem. Quando Zé Bebelo resolve punir um recém chegado que lhe dirige um gracejo fora de propósito, isso novamente se comprova, trazendo ao mesmo tempo, porém, uma contraprova para tanto, ao se deixar perder por comportamentos pouco aceitáveis em um verdadeiro chefe. Mas de toda forma, deve ficar claro que tal exercício permanente (e necessário) de autoridade geralmente quase sempre se fazia à maneira, por assim dizer, guevariana: sin perder la ternura.
A ampla aceitação pelos liderados era, naturalmente, parte essencial da liderança entre os jagunços. À maneira de cada um dos chefes, mais discretamente em Medeiro Vaz; escancarada como em Zé Bebelo; ou ainda intermediária, como em Joca Ramiro. Esta era uma boa prática de comando, que todos sabiam como executar – embora cada um à sua maneira – e cumpriam à risca.
Carisma, como emblematicamente Joca Ramiro apresentava, de forma exponencial, aliás, nunca poderia faltar em um correto chefe jagunço. Mas não era tudo. Conhecimento também era essencial, seja de tipo mais transcendente, por exemplo de saber ler a alma dos subordinados e dos inimigos, ou mais objetivo, relativo à mudança do tempo, fluxo dos rios, cantos de pássaros, ausculta de ruídos de animais ou inimigos, interpretação dos sinais da natureza e outras coisas assim. É através de tal combinação que se fazia um perfeito Senhor da Guerra.
Jagunços, como quaisquer membros de grupos humanos em posição serviçal, desde os funcionários de pequenas quitandas de esquina até os técnicos da Microsoft, costumam se sensibilizar e se mobilizar ao lhes serem facultadas informações relativas à consciência dos objetivos para os quais são dirigidos seus esforços. Embora isso não seja sempre explícito na obra, certamente era uma questão chave nas ações de comando. No caso, não era apenas a glória e o reconhecimento simbólico que aqueles homens estariam a buscar, mas sim recompensas materiais palpáveis. Para tanto as chefias (ou lideranças) deveriam desenvolver especial estofo, combinando mais uma vez conhecimento e malícia.
Para finalizar, cabe a pergunta: estes capi sertanejos eram verdadeiros líderes ou apenas chefes? Na verdade tal distinção pouco se aplica ao caso deles ou, simplificando, eles eram o que eram, perfeitamente adaptados às condições do tempo e do ambiente em que viviam, nada mais. Capaz que fossem uma coisa e outra, ao mesmo tempo, todo o tempo. Academicamente um líder é aquele que guia, que divide responsabilidades, que mantém relações interpessoais tranquilas com seus subordinados e incentiva o progresso deles. Tudo muito bacana, mas em um bando de jagunços não é bem assim que funciona, tem que ter lugar para a contingência e o improviso. Da mesma forma que no exército, na polícia, no planejamento organizacional ou até mesmo em um centro cirúrgico.
Mas isso, na verdade, representa um dilema – ou nem tanto – que o próprio JGR se encarrega de iluminar: Uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons… De sorte que carece de se escolher…
Bebelo, Ramiro e Medeiro fizeram suas escolhas, em um país de pessoas, de carne e sangue. Ninguém poderia dizer que se tivessem feito de outra maneira teriam feito melhor.
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Publicações minhas aqui no blog sobre este mesmo tema – acesse:
Da liderança em Saúde – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO!
O que garante a sustentabilidade da gestão em saúde? – A SAÚDE NO DISTRITO FEDERAL TEM JEITO!
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Continuando a brincadeira, por assim dizer, apresento aqui o que chamo de Decálogo de Joca Ramiro, ou seja, um conjunto de 10 aforismas que devem fazer parte do modus operandi de um verdadeiro líder (acesse abaixo)
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Terraplanismo em alta.
O SUS aceita a homeopatia, que conta com o endosso do Conselho Federal de Medicina (CFM) e do Ministério da Saúde. Existe até um “Dia Nacional da Homeopatia”, 21 de novembro, em memória da que data em que o homeopata francês Benoit Mure, responsável pela introdução da prática no país, chegou ao Brasil. Acontece, todavia que o consenso científico internacional, após variados estudos clínicos, revisões e análises estatísticas , é de que a homeopatia não funciona melhor do que um placebo. Isso já fez com que países como Inglaterra, Austrália e França a retirassem tal prática de suas redes de saúde pública. Nos Estados Unidos, o órgão federal de defesa do consumidor passou a exigir que todo medicamento homeopático informe, na bula, que é baseado em princípios contrários ao conhecimento científico. O Brasil, entretanto, continua a insistir na homeopatia e assim desperdiçar recursos escassos em tal modalidade de terraplanismo médico. Para saber mais acesse: https://revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2024/11/21/dia-nacional-do-terraplanismo-medico

