Saúde na China

É impossível não ter interesse sobre as coisas que acontecem na China. O foco de nossa curiosidade mais frequentemente se volta para aqueles trens-bala que atravessam o país de ponta a ponta, ligando cidades grandes, médias e pequenas; os prédios que fazem inveja até mesmo àqueles dos Emirados; as estradas abertas em pleno deserto; as enormes construções realizadas em pouco dias; os carros elétricos hoje onipresentes lá (e cá); as cidades enormes e totalmente informatizadas; as tecnologias digitais brotando e se impondo em toda parte etc. E bota etc nisso! Com efeito, pessoas da minha geração se acostumaram a ver este país através de antigas imagens, com as ruas vazias de automóveis e a multidão de pessoas vestidas de maneira uniformizada, para não falar dos tanques na Praça da Paz Celestial reprimindo as pessoas, mas ao mesmo tempo sendo detidos por um único cidadão valente. Mas pelo que vemos hoje, existe uma outra China, real e totalmente diferente. E é sobre esta aí que me pergunto: como são as coisas da saúde por lá? Tal indagação teria, a meu ver, especial cabimento aqui no Brasil, onde a militância triunfalista do SUS apregoa que temos “o maior sistema público de saúde do mundo” – e não deixa por menos! Mas será que isso seria verdade, principalmente se considerarmos o fato de que a nossa população é de apenas a sétima parte da deles, em um país onde a presença estatal é forte em tudo – e não seria também no campo da saúde? Assim, fiz algumas pesquisas para tentar responder a tal questão, que na verdade se desdobra em muitas outras. 

Uma coisa é certa, na China nada hoje é como antes, inclusive na área da saúde, na qual o sistema de cuidados se desenvolveu muito nos últimos anos, com avanços presentes e constantes. Com efeito, os chineses podem ter acesso a atendimento médico universalizado, através de variadas estratégias, nas quais a presença estatal é obrigatória, seja na regulação ou na operação direta, com um sistema de financiamento misto, seja dos cofres do governo ou do bolso das pessoas. De forma surpreendente, também, existe ampla e variada oferta privada, sendo possível ao cidadão complementar a atuação pública com a cobertura privada. Sim, porque a base do sistema de saúde chinês é o que chamamos por aqui de seguro de saúde, ou seja, um sistema de pré-pagamento, que pode ser de natureza pública ou privada. Não esquecer que já tivemos algo semelhante no Brasil, entretanto cobrindo menos da metade da população: o sistema de Previdência Social encabeçado pelo Inamps, superado pela criação do SUS.

Em tal sistema chinês há diferentes categorias de usuários, a saber: (1) Os empregados (formais) urbanos, beneficiários de um seguro-saúde típico, de desembolso pessoal obrigatório (6 a 12% do finaciamento), compartilhado com os empregadores (estes, apenas 2%), com cobertura de cuidados primários e especializados, inclusive de medicamentos, tradicionais ou industrializados. (2) Sistema cooperativo, seguro de natureza voluntária, destinado a moradores das zonas rurais, cobrindo apenas atenção primária, com algum grau de coparticipação financeira dos beneficiários. (3) Plano para moradores urbanos não formalmente empregados: seguro (pré-pagamento) destinado a quem não está empregado e também aos autônomos, com cobertura integral para atenção primária, mas não para especialidades. (4) Seguro privado: geralmente destinado a estrangeiros, mas também utilizado por chineses que se sentem em condições de obter um up-grade nas formas habituais de seguro, oferecido em pacotes diferenciados, de custos proporcionais aos benefícios.

Assim, a maioria dos cidadãos chineses pode optar pelo seguro de saúde apoiado pelo governo. No entanto, exceto pelo programa principal, destinado às pessoas formalmente empregadas e residentes nas cidades, a cobertura não é total e isenta de despesas, ou seja, pode ser preciso desembolsos pessoais para cobrir despesas médicas. Mas é certo que o financiamento público para a saúde, incluindo cuidados hospitalares, varia de acordo com a localização dos usuários, existindo diferenças no apoio adicional do governo, em áreas de baixa renda e rurais. Mas atenção: o valor de tal seguro é bastante baixo, permitindo amplitude no acesso, sem impedir que exista alguma coparticipação do usuário em alguns dos cuidados oferecidos.

A China teria, assim, um sistema de saúde universal, como aqui no Brasil? A rigor, não teria, porque dependeria de alguma forma de adesão financeira dos cidadãos, mas cabe lembrar que o governo chinês ampliou sobremaneira as estratégias de acesso ao seguro público de saúde. Assim, existem taxas e “prêmios” de seguro a serem pagos, com custo reduzido, não necessariamente obrigatório para todo mundo. Isso não significa, necessariamente, que todos consigam ter acesso garantido e igualitário ao sistema – o que não diferencia muito a China do que se vê por aqui no Brasil.

Assim, cabe a pergunta: assistência médica é gratuita na China? A resposta é clara: mesmo sobre cidadãos chineses com seguro de saúde público, podem incidir taxas para atendimento e medicamentos, entretanto, com custos fortemente subsidiados, ampliando extensivamente a cobertura real. Existe, de fato, a necessidade de coparticipação financeira, seja para atendimento médico ou medicamentos, a depender do tipo de seguro que a pessoa utiliza, variando também de acordo com as necessidades individuais de saúde, o tipo de serviço almejado ou necessário, além de outros fatores. Estes custos, entretanto, de acordo com relatórios internacionais (por exemplo, do organismo internacional  Commonwealth Fund) são baixos, quando comparados àqueles praticados em outros países. A consulta com especialistas, por exemplo, tem custo estimado entre US$ 6 e US$ 20.

Quanto à medicação ambulatorial após consulta especializada, um item que sabidamente pesa muito nas despesas individuais e familiares, o custo na China varia entre US$ 6 e US$ 16, sendo todo gasto passível de reembolso, com limitações apenas para alguns medicamentos. Além disso, existem descontos para aposentados em alguns tipos de prestações de serviços, com apoio governamental também disponível para pessoas de recursos insuficientes ou que não têm seguro, embora representem fração muito pequena da população. 

Em relação a estrangeiros, é necessário contratar um seguro de saúde privado específico, como mostrado no item 4 da relação acima. Aliás, neste aspecto, o governo chinês está atualmente incentivando o mercado de seguro de saúde, para permitir que tanto estrangeiros quanto cidadãos chineses de maior renda tenham uma gama mais ampla de opções de cuidados de saúde. Aliás, hospitais privados estão disponíveis em todo o país, principalmente nas grandes cidades e capitais provinciais, estimando-se que haja mais de 21 mil desses hospitais no país, além de milhares de instalações privadas comunitárias e de vilarejos, em toda a China.

Como se pode comparar, enfim, o sistema chinês de saúde com aqueles de países, como os EUA, nos quais o Mercado e não o Estado domina o cenário. Aqui vai uma breve síntese: (1) Mais de 95% dos cidadãos chineses têm seguro de saúde público — significativamente mais do que nos EUA. No entanto, mesmo com seguro público, os pacientes na China precisam pagar algumas taxas e coparticipações. (2) Os custos de saúde per capita nos EUA em 2018 atingiram US$10.586, enquanto o equivalente na China foi de apenas US$ 688. Para referência, a média da OCDE foi de US$ 3.994. (3) Nos EUA, há 2 médicos e 11,9 enfermeiros por 1.000 habitantes — na China, essas cifras são 2,6 médicos e 2,7 enfermeiros, refletindo as diferenças em como os cuidados de saúde são acessados e administrados nos países. (4) Conseguir uma consulta com um especialista nos EUA pode envolver uma espera significativa. Nos hospitais públicos chineses, o processo pode ser mais rápido, e os pacientes podem optar por pagar mais por um atendimento mais rápido — seja oficialmente ou por meio de canais menos formais.  Enfim, prosseguindo na comparação acima, se alguém não tiver o seguro ou a cobertura adequada para suas necessidades de saúde na China ou nos EUA, poderá se deparar com contas médicas altas.

O sistema de saúde na China está em evolução e sem dúvida faz parte das grandes transformações que O país vem experimentando. A direção das progressivas reformas que ocorrem na China, sem dúvida, se volta para fazer com que a maioria dos cidadãos possam acessar os cuidados de saúde de que precisem, se descuidar de oferecer opções e cuidados adicionais para aqueles de maior renda.

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Comentando, então, tais informações, pode-se dizer preliminarmente que não é simples comparar coisas incomparáveis, como é o caso de se tentar alguma analogia do sistema chinês, seja com o SUS ou com o caso dos EUA.

Mas pode-se contar com alguns indicadores interessantes, que de certa forma situam a eficácia das políticas de saúde, entre os quais o exemplo clássico é o da moralidade infantil. Nas China e no EUA ele tem valor aproximado, ou seja, entre 5 e 6 óbitos abaixo de um ano de idade por cada mil nascidos vivo; no Brasil é 13, com tendência a queda, principalmente depois da criação do SUS. Até aí, tudo bem, mas o chama atenção é o gasto per capita com saúde, com na China está abaixo de US$ 1.000 anuais e nos EUA é mais de dez vezes maior, chegando a US$ 11.000, donde se conclui que há fatores diferenciais importantes em termos de eficiência nos dois sistemas. A propósito, no Brasil tal indicador está em torno US$ 1.500 anuais.

Em relação ao Brasil, curiosamente, poderia pesar a nosso favor o fato de que a Constituição de 1988 ter abolido o sistema de seguro-saúde capitaneado pelo INAMPS, que corresponderia basicamente ao modelo chinês, transformando a saúde em direito universal garantido pelo poder público. Mas tal diferença é apenas formal, porque a presença do Estado na saúde é muito forte na China, tanto na regulação, como no financiamento e mesmo na prestação de serviços, enquanto no Brasil a prestação de serviços é, em muitos casos, dominada pela iniciativa privada, seja diretamente ou através dos planos de saúde, além da presença de lobbies formais no Congresso que interferem sobremaneira no processo regulatório. Na China a regulação estatal é muito mais efetiva e pro-cidadão, em sintonia com o regime de partido único que vigora por lá.

Assim, apesar de formalmente ser “misto”, em termos públicos/privados e financeiros, o sistema chinês se diferencia profundamente do nosso (ou dos EUA) pelo poder estatal quase absoluto, que não agiria em favor de pressões privadas, mas sim de benefícios coletivos, inclusive dando suporte aos cidadãos que porventura esbarrem em barreiras financeiras relativas à sua saúde, abrindo-lhes caminho fora da esfera do Mercado.

Há que se notar, também, que o poder regulatório do Estado, sobre toda o conjunto da economia, aliás, faz com que o volume dos custos na saúde, seja para serviços, medicamentos e outros insumos, seja muito mais reduzido para os consumidores do que aquilo que acontece quando a estrutura capitalista é dominante, como acontece no Ocidente.

Resta conhecer se o cidadão chinês médio está satisfeito com a saúde que o governo lhe oferece. É difícil saber, não conheço pesquisas de opinião a este respeito realizadas na China, se é que elas existem. As imagens que temos são de uma massa enorme de gente bem nutrida, bem vestida, que tem onde morar (na China há superavit de moradias e não déficit como aqui e nos EUA) e que não perde duas ou três horas por dia a bordo de ônibus ou trens sucateados para ir trabalhar – muito pelo contrário. Se estão satisfeitos, ou não, com a saúde pública, é outra conversa. Em todo caso, não custa lembrar que na China, culturalmente, a sociedade está sob forte influência do confucionismo, doutrina duas vezes milenar, com repercussões em todo o Oriente, que preconiza o respeito e a gratidão com tudo que “vem de cima”, seja o conselho dos mais velhos, a obediência filial ou mesmo as políticas do Estado. Creio que alguma avaliação sobre “satisfação” de usuários deveria levar em conta tal fenomenologia social.       

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Para maiores informações, acesse: China healthcare system, explained – Wise

Uma resposta para “”

  1. De Henriqueta Camarotti recebo o seguinte COMENTÁRIO:

    Flávio gostei muito do teu artigo sobre a Saúde na China
    Primeiro porque acho importante conhecermos como funciona os sistemas de saúde nos outros países, e segundo sou sempre muito curiosa em saber das soluções encontradas para um tema tão complexo.
    Gostaria de te sugerir, Flávio, que completasse esse ótimo texto, falando sobre a política de saúde pública, no tocante a atenção à saúde, prevenção de doenças, saúde comunitária e saúde mental nesse mesmo país. De fato seria a pergunta: como a China cuida da saúde pública propriamente dita e de seus cidadãos ?

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