SUS: um problema sem solução ou uma solução com problemas?

O SUS é fruto de elaborações dos Constituintes de 1988, corroborado por uma história mundial progressista em termos de saúde pública. Considerar a saúde como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas de gestão estatal adequadas, como está escrito na Constituição Federal representa, simplesmente, um marco civilizatório. Mas quase 40 anos depois, é visível que e o quadro da saúde no país continua cheio de problemas, justificando indagarmos se haveria algo melhor que o SUS que o Brasil deixou de desenvolver? Ou, quem sabe, não teria perdido tempo em fazer cumprir algo de fato inviável? O SUS, afinal, seria mais uma solução ou um problema?

Defendo que o SUS, sem dúvida, é uma excelente solução. Os motivos de (ainda) não ter dado certo é que precisam ser esclarecidos. Observemos, por exemplo, a marcante melhoria dos indicadores de saúde que a criação do SUS possibilitou, com a expansão significativa da rede de serviços sob gestão pública de saúde em todo o território nacional.

E tem mais, muito mais…

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O trumpismo e a saúde no Brasil

Se você, caro leitor, achou que há algum exagero na relação sugerida pelo título acima, não vou lhe negar a razão, mas posso explicá-la melhor. Quando falo “trumpismo” estou indicando a onda de direita que se levanta em todo o mundo, vitaminada agora pelo agente laranja que ganhou as eleições nos EUA. Já a expressão “saúde no Brasil” pode ser trocada por “políticas sociais”, sejam de interesse dos países em desenvolvimento, como o nosso, ou também, por que não, dos países centrais. Esclarecido? Mas não há dúvida que repercussões imediatas de tal fenômeno já há tempos se revelam, como já vimos no período de testes realizado no país de origem do fenômeno, entre 2016 e 2020. E também aqui, sob a égide de seu tosco imitador tropical e do vampiro que o antecedeu. Assim, já havia indicações de que os mais pobres não seriam contemplados; que imigrantes seriam desprezados e banidos; que mulheres, índios, negros e minorias em geral estariam fora do escopo das políticas; que direitos adquiridos em saúde e outras áreas seriam atirados no lixo. E principalmente que os novos poderosos buscariam atuar sem freios, dentro de uma lógica de que “nós errados estamos mais certos do ‘eles’ certos” – e por aí vai. Entre o espanto e a revolta, contudo, é preciso tentar entender tais acontecimentos, mesmo que não seja possível extrair deles alguma solução, mas pelo menos para não naufragar no cinismo ou na descrença na política ou na humanidade. O fato é que muita coisa mudou no mundo, fazendo com que alguns de nossos velhos dogmas precisem ser revistos ou reciclados, à custa, naturalmente, de sangue, suor e lágrimas.  Explico melhor…

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Armínio Fraga: não é possível voltar ao modelo original do SUS

Armínio Fraga, ex-Presidente do Banco Central no governo FHC e figura carimbada do mercado financeiro, quem diria(!), virou uma referência importante na discussão sobre os rumos do sistema de saúde no Brasil. Os puristas ideológicos odeiam tal coisa, mas de minha parte devo admitir que está valendo a apena ouvi-lo, mesmo sem concordar cem por cento com o que ele ainda dizendo. Em entrevista recente à FSP, assinada pela jornalista especializada em questões de saúde, Claudia Collucci (ver link ao final), ele simplesmente defende que o país caminhe para um sistema de saúde que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus, com gestão de serviços terceirizada, não mais algo derivado daquele generoso sonho constitucional de 1988. Nas palavras dele: “Não acredito que seja possível voltar ao modelo original do SUS. Acho que seria mais fácil caminhar para um modelo que seja mais um híbrido de alguns modelos europeus.” De toda forma eu, Flavio Goulart, acredito que não devemos dar ao SUS um estatuto de causa finita, um sistema triunfante, perfeito e acabado. Ao contrário, sua viabilidade dependerá da possibilidade de seu aperfeiçoamento constante, mesmo que a custa da derrubada de alguns mitos e certezas sobre o mesmo (o que a militância naturalmente também repudia). Neste aspecto penso que as ideias de Armínio Fraga devem ser consideradas e somadas a outras, de extração diversa.

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Saudades da era pré-SUS? Fala sério…

A recente onda de revival político instalada durante o governo que passou, com aquela história de que não houve ditadura no Brasil e também que nesta época o país era melhor do que atualmente, parece ter seus desdobramentos também no campo da saúde. Não é que outro dia na fila da farmácia um senhorzinho insistia em afirmar à mocinha à sua frente que na área da saúde “as coisas haviam piorado muito” e que bom mesmo eram aqueles tempos em que as pessoas dispunham de uma “carteira do instituto”? Quanto à primeira parte da afirmativa, poderíamos até lhe oferecer o benefício da dúvida, indagando: as coisas pioraram para quem? Mas a segunda parte, que fala da tal carteirinha, não tem perdão. É coisa de fato inafiançável (para dizer pouco…). Para quem não sabe o que é isso (afinal é coisa quase tão antiga no Brasil como o golpismo fardado) eu explico: houve uma época que o direito pleno à saúde era conferido apenas a quem tinha emprego formal e filiação aos antigos Institutos de Previdência (que depois se transformaram no INPS), ou seja, alcançava menos da metade da população do país. Então, como a saúde no país poderia ter sido considerada adequada em tais tempos? Eu fui testemunha disso, pois nasci, cresci e me formei em medicina debaixo de tal sistema, perdão, antissistema. Havia filas imensas em toda parte, nos serviços filantrópicos, públicos e até mesmo nos previdenciários; mortes em tais filas faziam parte da paisagem, da mesma forma que partos em taxis e viaturas policiais; morriam crianças aos montes por simples diarreias. Para quem podia pagar consultas e internações em cash tudo corria bem. Mas eram bem poucos os habilitados a isso. Isso para não falar na corrupção incontrolável que regia a contratação de serviços privados (a regra em tal sistema) pelos tais institutos. Alguém diria: mas filas e corrupção existem ainda… Concordo, mas vamos combinar: o SUS é uma solução, sim, embora apresente problemas, mas definitivamente não é um problema sem solução. Tenho apresentado e discutido aqui neste blog algumas dessas saídas. Hoje quero mudar o tom, trazendo três relatos (“casos”) de meu livro de memórias (Vaga, Lembrança – edição pessoal, Brasília, 2021), mostrando aos leitores uma ideia do que representavam, de fato, aqueles tempos em que, segundo pontificava o dito senhorzinho, a saúde era melhor do que no Brasil de hoje. Será?

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O SUS entre o triunfalismo e o negacionismo

Pobre SUS: alguns o ameaçam e o desacreditam como podem. Outros conferem a ele um caráter mítico, capaz de fazê-lo triunfar pelos seus méritos absolutos e inquestionáveis, como se o mesmo não tivesse problemas de sobra e como se os seus negacionistas não tivessem a força (e os argumentos) que realmente possuem e viessem a ser derrotados apenas pela luminosidade da verdade. Aquela verdade em que os tais triunfalistas acreditam, é bom lembrar. Exemplificando: li por estes dias (ver link) a entrevista de Tulio Franco, docente da UFF e emérito sanitarista ligado ao main-stream da esquerda sanitária nacional (não vai aí nenhum demérito). Disse ele a respeito das investidas do Centrão para a substituição da Ministra da Saúde Nisa Trindade: Não senti uma ameaça por dois motivos: tem um novo sujeito coletivo em cena, que é o movimento social da saúde, de base social e ampla que a do sanitarismo tradicional e que inclui movimentos sociais de origens diversas e até externos à Saúde. Pela sua multiplicidade e base nacional, e por ter sido formado no período recente de luta pela reconstrução do país, é muito forte. Está ativo e vigilante, o que é percebido pelos atores políticos”. E prossegue: “Vencemos a eleição, participamos da transição, comemoramos a indicação da ministra Nísia e estamos em várias estruturas de participação social do governo. Isso também legitima o movimento e o ministério da forma como está constituído, sob forte compromisso com a construção do SUS e da democracia. Tudo isso forma uma base social forte e sólida, que protege a Saúde contra os arroubos fisiológicos”. Mas não é só ele. Sônia Fleury e Luiz Antônio Neves, dois sanitaristas do Rio de Janeiro, ligados à mesma corrente pró-SUS a que eu chamaria de triunfalista, em alto e bom som sobre o mesmo assunto afirmaram: “a sociedade já está mobilizada em apoio ao SUS e à gestão da Nísia Trindade no ministério da Saúde, e em defesa da democracia que vai muito além do sistema eleitoral e partidário, pois se concretiza no modo de vida cotidiano […] falta ainda [ao novo governo] o entendimento de que a saída do círculo de giz, no qual as forças reacionárias e conservadoras pretendem imobilizá-lo, encontra-se justamente na mobilização da sociedade que lhe assegura governabilidade”. Melhor do que isso só se fosse, se não a verdade pura, pelo menos ideias marcadas pelas evidências. Mas não o são… E digo os por-quês a seguir.

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