Navegar é preciso…

A cidade de Niterói é às vezes lembrada de maneira depreciativa, principalmente pelos seus vizinhos do outro lado da Baia de Guanabara, como a cidade onde “urubu voa de costas” ou então aquela em que a grande atração é o que se avista de lá, ou seja, a orla do Rio de Janeiro. Não entremos no mérito, isso cheira a preconceito e até despeito. Porque na saúde, Niterói, sem dúvida, tem dado direitinho seu recado. Nesta cidade, nos remotos anos 70 já ocorria um programa de unificação e integração em saúde, o Projeto Niterói, anterior ao SUS portanto (e com vários de seus conteúdos), com participação da Prefeitura, da Universidade, do Estado e de outras entidades locais. Como se não bastasse, foi uma das primeiras cidades do Brasil a implantar o Programa de Saúde da Família, antes mesmo de ele existir com este nome, trazendo para tanto a assessoria de médicos cubamos.  E a cidade agora nos traz outra novidade de peso: a implementação de um “Navegador Clínico” em sua rede de serviços, ou seja, um profissional de saúde de nível superior a quem será dada uma nova função: a de garantir que procedimentos médicos adequados sejam oferecidos aos pacientes também em tempo adequado. Parece pouca coisa, mas tem muito significado e impacto. Este é o Navegador Clínico, que terá também o papel de mobilizar toda a rede de cuidados, tanto de saúde quanto de outras redes intersetoriais para garantir todo o apoio ao paciente portador de câncer.

Já falei sobre isso aqui anteriormente (ver link), mas podemos esmiuçar a proposta um pouco mais detalhadamente. Este navegador deverá ser alguém que conheça de fato a rede de serviços e seus dispositivos de apoio, ao longo de todo o percurso dos pacientes. Sua atuação representa uma resposta concreta aos chamados “vazios assistenciais” existentes no SUS, devido aos quais os pacientes muitas vezes perdem demasiado tempo – e até avida – na espera vã por procedimentos, consultas e exames.

No texto que produzi para este blog há cerca de um ano, chamado “De Navegadores e Porteiros” (https://saudenodfblog.wordpress.com/2020/09/14/de-navegadores-e-porteiros/) enumerei as diversas atribuições de tal profissional, no âmbito da Atenção Primária à Saúde: (a) estar ciente e entender as necessidades e demandas das pessoas, junto com a equipe de saúde; (b) auxiliar as pessoas no engajamento do cuidado com sua saúde e, se for principal cuidador de algum familiar, no cuidado destes; (c) facilitar o acesso das pessoas nos recursos de saúde que as mesmas tem indicação de uso, tanto no agendamento dos atendimentos quanto nas liberações de autorizações; (d) identificar os obstáculos para o melhor cuidado, sejam eles na rede de serviços, nos serviços de APS ou em domicílio; (e) garantir prontidão de retorno para a equipe sempre que algum ponto de atendimento não for contemplado, no prazo e lugar definido; (f) informar tempestivamente a equipe sempre que tiver conhecimento de uso de Pronto Socorro ou escape do plano terapêutico individual; (g) registrar adequadamente nos sistemas informatizados ou outro; (h) facilitar comunicação adequada entre todos os envolvidos no cuidado das pessoas; (i) operacionalizar o adequado monitoramento de todas os agendamentos e necessidades trazidas pelas pessoas.

A responsabilidade por tais ações deveria ser, se não exclusiva, pelo menos lógica, precípua e naturalmente, do pessoal da Enfermagem. Esta navegação de pacientes nos serviços de saúde, todavia, é mais um atributo e responsabilidade de pessoas do que propriamente um setor físico, como acontece, aliás, com a prática de acolhimento. Isso não impede, entretanto, que o atributo da Navegação tenha uma pessoa física, de preferência enfermeira(o), direta e formalmente responsável por ele. Este conceito se aplicaria não apenas a hospitais e pacientes crônicos, como é caso presente de Niterói, mas pode pefeitamente ter seu âmbito estendido também à atenção básica, onde, aliás, ela talvez tenha um papel ainda mais importante do que em outros serviços.

Tentando descrever em uma só palavra tais tarefas, a expressão integração, seja entre meios e fins, processos e resultados, talvez seja a mais exata, além de abrangente. Ela aqui se opõe à fragmentação, que é habitual nos serviços de saúde, aspecto que é quase sempre responsável não só por custos exagerados, como também pelos resultados decepcionantes ou mesmo prejudiciais aos pacientes. Não é demais lembrar, ainda, que tanto as tarefas de navegação como o papel dos seus agentes devem ser conhecidos, discutidos e esclarecidos, para serem compreendidos e acatados pelo conjunto de atores no âmbito dos serviços de saúde.

Neste aspecto, a expressão “manter os pacientes no radar do serviço” (Bengoa) é bastante expressiva para designar uma das tarefas fundamentais que compete aos bons navegadores de saúde. Associados a tal diretriz, três componentes devem fazer parte das ações de navegação: vinculação, atendimento, encaminhamento. Além disso, mecanismos de gestão clínica e seus respectivos agentes devem estar associados a tal prática, podendo ser citadas o trabalho em equipe, a formação de redes, o uso de guias e protocolos, a classificação de risco, os processos de gestão da clínica e de casos, a geração de indicadores de satisfação e resultados, o uso da noção de valor, entre outros. Em outras palavras, o bom navegar exige instrumental próprio.

A boa navegação depende também de bons sistemas de informação, que devem passar a incluir entre seus elementos constituintes alguns domínios de interesse, por exemplo, dados sobre interações dos pacientes em vários pontos da linha de serviços, tipo de procedimentos recomendados e demandados, evidências de resultados, perda ou manutenção do contato com os serviços. Dentro disso, a definição e o monitoramento de indicadores são fundamentais, podendo-se incluir aí aqueles relativos a risco, demanda, seguimento e resultados. As ações de demanda e seguimento devem ser conjugadas e ter em foco pelos menos dois trajetos possíveis: a consulta médica, nas variedades primária ou especializada, e a participação em grupos de promoção da saúde de diversas naturezas.

Embora as noções de “portaria” e “porteiro” (gate-keeper), associadas ao atributo ora discutido, apresentem também valor significativo na estrutura da APS, é preciso compreender a navegação como conceito que deve ir além disso, constituindo um verdadeiro diferencial nos serviços, ao possibilitar, de fato, a organização, a coordenação e a administração das atividades relacionadas ao paciente, de forma integrativa e articulada entre os diversos pontos da linha de produção de cuidados, garantindo, ao fim e ao cabo, reais eficiência, humanização e economia nos serviços prestados.

Por último, sem deixar de ser importante, cabe lembrar que os princípios gerais que se aplicam à noção de saúde baseada em valor (ver link) também são necessários e essenciais ao que se discute aqui. Assim, devem ser lembrados: a valorização dos diversos sujeitos implicados no processo de produção de saúde, sejam eles pacientes, seus familiares, trabalhadores dos diversos níveis e profissões, além dos gestores da instituição; as diretrizes da transversalidade e transdisciplinaridade; o protagonismo de cada um dos sujeitos envolvidos; a não-separação entre as funções de atenção e gestão; a gestão descentralizada e participativa; os cuidados com os ambientes onde se vive e se cuida ou é cuidado; a utilização de contratos de gestão baseados em resultados e impactos positivos reais sobre a saúde; a ampliação do acesso; no caso dos hospitais, as práticas de visita aberta e de participação das famílias, além de foco no monitoramento e na avaliação.

Concluindo recorro ao preâmbulo do livro seminal de Barbara Starsfield sobre Atenção Primária à Saúde, onde há uma frase de paciente que é altamente reveladora de um dos grandes dilemas dos sistemas de saúde atuais, ou seja, em tradução aproximada: eu já passei por muitos médicos, mas queria ter apenas um, que juntasse tudo. Acho que todos nós somos testemunhas disso, se não em termos pessoais, com certeza em relação a nossas famílias, nossa rede de conhecidos ou nos serviços de saúde com os quais interagimos profissionalmente. Com efeito, um dos resultados mais nocivos da fragmentação que caracteriza os serviços de saúde atuais é exatamente a contradição entre a escassez, por um lado, e a multiplicidade, por outro, dos meios utilizados na assistência, não levando à produção satisfatória de indicadores de saúde, ao conforto dos pacientes, à facilitação da vida dos que prestam serviços, além de acarretar custos enormes aos processos relativos à assistência. É um antissistema de antisserviços, sem dúvida, que na verdade não interessa a ninguém. Mas existem soluções. A introdução da figura do navegador (que nos planos privados de saúde às vezes é denominado concierge) representa um avanço neste sentido, sem impedimento de que possa ser ainda aprimorado.

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Saiba mais:

Sobre o Navegador Clínico em Niterói: https://outraspalavras.net/outrasaude/o-novo-presente-de-niteroi-ao-sus/

Estudo de caso sobre o sistema de atenção primária em Niterói (excerto de minha Tese de Doutorado na Fiocruz – 2002)

Textos correlatos publicado neste blog (minha autoria):

2 respostas para “Navegar é preciso…”

  1. Flávio que notícia boa! Finalmente!
    Niterói inovando novamente!
    Participei da 1a mesa na 9a Conferência de Saúde do DF em 1995. Lá, entre outras, apresentei a proposta de que houvesse um profissional de saúde no SUS que pudesse fazer o que um advogado faz a seu paciente no sistema judiciário. Represente seus interesses e faça o processo “andar”. Afora as pequenas causas… creio que a complexidade do sistema de saúde é por demais gigantesca e sofisticada para ser “enfrentada” por um cidadão comum sem apoio personalizado de um profissional da saúde … que faça às vezes de um defensor público do cidadão paciente do sistema público. Sem contar a natureza intrínseca da vulnerabilidade do paciente da saúde!
    Creio que não só a enfermeira… mas os sanitaristas também tem um perfil todo talhado para esse tipo de microfísica da defesa e efetivação de direitos no chão da clínica!
    Um grande e valoroso campo de ação profissional se descortinaria!
    Abraços!
    Adorei!

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