Era Primavera (fábula moderna)

Era primavera e Luleão voltara ao Governo Geral da Floresta. Como encontrou tudo muito bagunçado por ali, com muito desentendimento entre seus súditos, resolveu se cercar das melhores cabeças, patas, chifres, trombas e caudas disponíveis para ajudá-lo na necessária união e reconstrução daquela tremenda destruição, que o comando anterior, por parte de Jairafa, havia semeado pelos quatro cantos.

Ao chegar ao governo, porém, Luleão teve que se entender com determinados animais que haviam se ajustado de forma tão íntima ao poderoso do momento que se tornara difícil separá-los um do outro, eis que figuravam agora como um corpo único e indistinguível em seus elementos componentes. O Alcemim, foi o primeiro a atender seu chamado e Luleão até confiava nele, mas logo vieram também outros que haviam apoiado – e muito – a Jairafa, sendo estes liderados pela conhecida figura do Liragarto, além da família dos grande Símios da Floresta e também Vermes e Ofídios diversos.

É que Luleão havia percebido que se não fizesse isso seria rapidamente devorado, como acontecera algum tempo antes com uma amiga sua, por temíveis predadores sob a liderança da muito poderosa Vicunha, aliada a muitos daqueles bichos que estavam com ele agora – ou pelo menos assim o diziam. Mas sabe-se lá até quando e quanto, era o que secretamente pensava o Luleão, no recesso de sua toca do lado nascente da Floresta, no que era apoiado por Janjandaia, sua ave de estimação e conselheira.

Como no meio de tanta bagunça a questão da saúde dos bichos se apresentava com enorme intensidade, se destacando de várias das outras áreas, quase tão prejudicadas como aquela, resolveu buscar alguém de sua total confiança sua ou de seus amigos próximos para exercer o cargo de mandatário (ou mandatária) de tal setor. Foi assim que chamou a Corça.

Corça era uma flor de pessoa. Como se não bastasse ser bonita, simpática e muito comunicativa, era dotada de uma competência extraordinária, que a faziam destacada em toda a floresta e mesmo além dela. E o melhor, ela tinha apoio de muitas outras categorias de bichos, embora Liragarto discordasse disso, soprando sub-repticiamente aos ouvidos de Luleão que ela não estava preparada para função tão alta e que o melhor seria indicar para o cargo o Carcará, que segundo Liragarto já havia provado sua competência nos Reinos do Norte.  

Para que improvisar e correr risco – indagava o Liragarto – se bem podemos contar com alguém já fartamente escolado nestes assuntos?

Fartamente, fatalmente ou falsamente? Foi o que pensou a Janjandaia, que justamente passava por ali naquele momento. Chegou a segredar isso ao Luleão, mas logo se calou, dado o seu papel restrito no Governo Geral, fator agravado pelas desconfianças que o Liragarto espalhava a respeito dela, por toda a Floresta.

E assim Corça foi alçada ao cargo de RGSB, ou seja, Responsável Geral pela Saúde da Bicharada. E logo começou a exercer suas tarefas com grande entusiasmo, atendendo ao que lhe parecia ser uma determinação do Plano de Governo de Luleão, ou seja, que era preciso arregimentar as melhores cabeças, patas, chifres, trombas e caudas da Floresta.

Neste momento Liragarto já estava em cena, nos bastidores, como era de seu feitio:

Excelência, de que adianta termos as mais perfeitas cabeças, patas, chifres, trombas, caudas e coisa e tal, se não temos o mais importante, que são os cascos, unhas e dentes?

Corça, mesmo sem escutar tal conversa, logo percebeu o alcance dela. Nos primeiros dias viu que rondavam suas portas e janelas, pelas madrugadas frias da Floresta, em passos furtivos, alguns vultos que logo se perdiam nas sombras. Nas semanas seguintes já lhe arranhavam as portas e até mesmo as forçavam, sacudindo dobradiças, gonzos e fechaduras. Os canteiros da entrada de sua casa já estavam inteiramente pisoteados, com rosas, perpétuas e hortênsias, espalhados pelo chão. Alguns dos bichos que ajudavam Corça no RGSB começaram a ser ameaçados e depois sangrados e abatidos, um a um, com seus corpos atirados às encruzilhadas, para repasto de Lobos, Carcarás, Abutres e outros predadores e carniceiros da Floresta.  

Aquilo parecia não ter fim.

Corça, depois de muito relutar, resolveu desabafar com Luleão:

Assim, Excelência, não dá… Desse jeito vou acabar tendo que recolher meus braços às Manguinhas, tendo muita sorte se continuar viva.

Luleão não era de procurar (nem de enfrentar…) confusões. Foi logo dizendo para Corça:

Fique tranquila, minha filha, pois nunca dantes na nossa história alguém foi capaz de uma coisa dessa!!!

Alguns dizem que na verdade ele usou tantos pontos de exclamação que foi mesmo impossível contá-los. Mas deixemos por três, apenas…  

Corça voltou tranquila para casa, mas logo viu que seus sobressaltos se justificavam, quando em certa manhã, ao sair para trabalhar, deparou com uma prima sua, a Gazela, degolada e pendurada de ponta-cabeça numa encruzilhada.

Passados mais alguns dias, Luleão convocou Corça ao Palácio do Empalalto e avisou para ela, bem de mansinho (como era de seu feitio), que ele ia arranjar para ela um cargo menos espinhoso, onde ela poderia ficar bem protegida, como membro e representante da Floresta no Oráculo de Minudências em Saúde (OMS), situado bem longe dali.

E Corça para lá foi. Fazer o quê? Melhor continuar viva do que ter o destino da prima Gazela.

Carcará foi imediatamente convocado para substituí-la e em discurso comovente disse que iria para o sacrifício, patrioticamente, tendo aceitado o cargo pela urgência da tarefa de recuperar a tão maltratada saúde da Floresta.

Mora(nima)is da História: (1) Confia no amigo, mas tranca sua porta. (2) Dependendo dos amigos que se tem, é dispensável ter inimigos.

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