People´s Health Dispatch, publicação com foco na política de saúde, direito à saúde e também em ações organizadas pelos trabalhadores do setor, traz à luz um relatório sobre a saúde mental de trabalhadores da saúde em diversos países do Sul e do Norte global, mostrando, como seria de se esperar, a existência de muitas disparidades entre os respectivos sistemas de saúde, mas também diversos problemas em comum, entre os quais se destacam as longas cargas horárias, a alta demanda de trabalho, os baixos salários e a precarização. As autoras, Ruth Ballardie e Vera Weghmann, esclarecem em entrevista (ver link ao final) as principais conclusões de sua análise. Vai a seguir uma síntese da entrevista, mas antes de passar a ela penso que caberiam alguns comentários sobre o tema do cuidado aos cuidadores. Nada mais justo do que pensar neles, sem dúvida. A obra em foco revela muitas distorções a que os trabalhadores de saúde estão submetidos, acima e abaixo do Equador, em países tão díspares como a paupérrima Libéria e a abastada Suécia. Destaca-se, por exemplo, o estresse ocupacional e o burnout, que crescem avassaladoramente em toda parte, enquanto as condições de trabalho em geral pioram, os salários encolhem, os direitos são restringidos e a carga de trabalho explode. Eu, que já fui pronto-socorrista na minha juventude, posso dizer que sei muito bem o que é isso. O texto de Ballardie e Weghmann, sem perder seu caráter militante, é muito elucidativo e vale a pena ser conhecido na íntegra. Mas há um reparo a fazer (nada é perfeito…). Não há neste texto nenhuma menção mais direta e insistente sobre os direitos dos pacientes. E todos sabemos que se há algo mais desrespeitado em toda parte, particularmente em um país como o Brasil, são os direitos dos pacientes – muito mais, aliás, do que os direitos dos trabalhadores. Não se trata de trocar uma coisa pela outra, pelo contrário, é importante que tanto uma como a outra sejam protegidas, defendidas e valorizadas. Mas no meu entendimento as pautas sindicais, no Brasil e em toda parte, costumam ser um tanto alheias quanto a este tipo de ênfase, que poderia ser traduzida pela simples expressão: a parte mais importante de um sistema de saúde são seus usuários. Que o sindicalismo em saúde explicite isso já no caput de seus documentos e que também o tema seja incluído nas análises que lhe são feitas. Sim, porque não faz sentido proteger trabalhadores da saúde enquanto os usuários são deixados em segundo plano. É isso aí: tudo junto e pra já!
Continue Lendo “A Saúde de todos e o bem-estar dos trabalhadores em Saúde: tem que ser tudo ao mesmo tempo!”Holocausto também é coisa nossa…
Nenhuma glorificação no título acima, claro, mas como a palavra Holocausto entrou na moda, graças a uma declaração polêmica (mas nem tanto…) de Lula, acompanhada do lançamento pela Netflix de um documentário chamado Holocausto Brasileiro, baseado em livro homônimo da jornalista Daniela Arbex, trago o assunto, sob este último enfoque, para nosso post de hoje. O filme descreve a história de agressões e mortes no antigo Hospital Colônia de Barbacena-MG. Ao longo quase um século de funcionamento foram registradas cerca de 60 mil mortes de pacientes, sem falar das incontáveis internações compulsórias. No documentário, Daniela entrevista pessoas ligadas direta ou indiretamente ao HCB (ex-pacientes, ex-funcionários, gente da saúde mental e testemunhas diversas). No início tudo corria de acordo com regras, digamos, mais “humanitárias” (cabem aspas), inspiradas em Philippe Pinel, precursor das reformas psiquiátricas ao tempo da Revolução Francesa. Contudo, na sequência, a instituição começou a receber um número vultoso dos considerados “loucos”, seja por familiares ou pela comunidade. O livro de Daniela Arbex revela que talvez apenas uns 30% de tais pacientes tinham diagnóstico real de doença mental, mas passaram a compor um vasto contingente de “indesejados”, entre eles mendigos, homossexuais, dissidentes políticos e moças desvirginadas. O meu contato com isso foi o fato de ter feito o curso de medicina na UFMG, no qual os cadáveres “utilizados” nas aulas de anatomia eram, em sua maioria, egressos de tal “loucocômio”, chegando ao anfiteatro da faculdade de maneira pouco ortodoxa e totalmente desumana. Vai aí um texto de minhas memórias (Vaga, Lembrança. Brasília 2001) que mostra meu contato com esta tragédia, como o leitor verá nos parágrafos finais.
Continue Lendo “Holocausto também é coisa nossa…”O SUS: histórias que ninguém contou
Todo mundo tem um amigo, parente ou conhecido que esteve em uma unidade do nosso sistema de saúde e saiu de lá com alguma reclamação a fazer. Mesmo diante de tais argumentos eu tenho sido desde sempre um defensor do SUS, aliás, participei de sua construção, como militante do Movimento Municipalista de Saúde, gestor público, docente e pesquisador universitário. Isso não tem impedido, todavia, que algumas vezes me acusem de ser um “inimigo” do SUS, pois não deixo de fazer críticas ao que ele tem de equivocado ou daquilo que precise ser reciclado no mesmo. Com os textos que exponho a seguir, escritos nos últimos anos, estou menos preocupado com a defesa do SUS, mas em contar uma história do mesmo que, a meu ver, ainda não foi contada em suas nuances, às vezes curiosas e até mesmo pouco honrosas, mas sempre com honestidade intelectual. Deixo claro, o que vai aqui não seria jamais a visão do historiador, que não sou, mas também não é a visão do militante obnubilado (aspecto comum…) pelo equívoco de que com tal construção o país “já chegou lá” em matéria de saúde. Não pretendo também usar voz do acadêmico ou do gestor público, mas sim aquela do ator social que viu as coisas de perto, ou seja, que esteve envolvido diretamente com a construção do sistema. De toda forma, meu objeto aqui é memorialista e assim não posso me furtar a falar do que vi e aprendi como pessoa que participou da criação do SUS. Admito que falo dele nem sempre com clemência, às vezes com decepção, mas sempre com esperança. Trago aqui algumas reflexões produzidas por mim ao longo de minha carreira, bastante enxugadas agora, para felicidade de meus leitores. Nelas busco recuperar um pouco de meu trajeto e de minhas ideias principais a respeito do sistema de saúde brasileiro. lutas. Creio, seja por sorte ou virtude, talvez tenha sido alguém que estava na hora e no lugar certos naqueles idos da década de 80. Me dê agora o prazer de sua leitura (ver a seguir)…
Continue Lendo “O SUS: histórias que ninguém contou”Escuta cidadã qualificada versus “controle” social
Com todo respeito, quando leio as leis e regulamentos existentes sobre a participação da sociedade nas políticas públicas no Brasil, especialmente na saúde, o que vejo são fórmulas burocráticas. Podem até ser bem intencionadas, mas seu caráter pesadamente formal e burocrático as torna pouco funcionais. Refiro-me diretamente, por exemplo, ao que nos oferece a Lei Orgânica do SUS, na qual se fala em paridade e poder deliberativo, além de conselhos formados por representações institucionais formais, mas não necessariamente representativas do conjunto dos interesses da sociedade. Não se preocupem, não me tornei, de repente, um herege em relação ao nosso sistema de saúde (embora pense que uma boa dose de crítica possa fortalecê-lo mais do que destrui-lo). É que essas coisas já estão superadas, se é que foram cogitadas, em realidades mais avançadas e dinâmicas do que a brasileira, em termos de democratização do Estado. Em tais questões, para mim seria o caso de nos esforçarmos em deixar de “fazer mais do mesmo”, em troca de inovar e incrementar métodos e conteúdos que valorizariam uma das mais importantes fatores introduzidos na administração pública contemporânea, quais sejam os mecanismos de instrumento de participação social. Vamos então, ao invés de “controle social” e outras alegorias congêneres, tão ao gosto da militância do SUS, pensar em Processos de Ausculta Cidadã Qualificada, nos quais a escolha dos cidadãos deve partir de requisitos menos formais, tendo como foco o interesse direto dos mesmos, seu grau de informação ou até mesmo sua representatividade em termos estatísticos.
Continue Lendo “Escuta cidadã qualificada versus “controle” social”O sonho de Dom Bosco: o povo de rua no DF ainda procura pela tal fonte de “leite e mel”
A Codeplan-DF nos apresenta os resultados de uma pesquisa sobre o perfil da população em situação de rua em nossa cidade, que teve como objetivo quantificar e diagnosticar o perfil da população em tal situação no Distrito Federal, visando subsidiar proposições e políticas públicas alinhadas às necessidades dessa gente. Assim, foi realizada não só uma contagem das pessoas em situação de rua que estivessem no espaço das vias públicas, em serviços de acolhimento institucional e em comunidades terapêuticas, mas também a caracterização, por amostragem, do perfil de tais pessoas. Esta pesquisa vem suprir uma lacuna de 11 anos sem estudos de tal natureza, já que o último destes, realizados pela Universidade de Brasília, data de 2011. O fato é que nesta última década muita coisa mudou na cidade – e para pior – considerando que nos últimos dois anos e meio tivemos uma pandemia, na qual a necessidade de isolamento trouxe novos impactos para a população em situação de rua. Afinal, se a ordem geral é para ir para a casa, para onde iriam as pessoas que não dispõem de moradia? E é em tal cenário que a população que ocupa os espaços da rua saltou aos olhos de todos nós, mesmo daqueles que não estavam acostumados – ou de alguma forma se recusavam – a enxergá-la. As constatações mais simples de tal estudo são que a população em situação de rua é heterogênea, está em uma situação de pobreza e sem vínculo com uma moradia fixa. Contudo, o que o senso comum diz sobre tais pessoas nem sempre é preciso, mostrando a pesquisa, por exemplo, que tais pessoas, no geral, estão em situação de insegurança alimentar, querem sair da situação de rua e buscam um emprego para conseguir essa mudança. O leitor poderá acessar o texto completo do relatório no link abaixo, mas aqui vai uma síntese dos achados do mesmo, além de alguns comentários meus. Nada mais distante daquele sítio onde jorraria “leite e mel”, segundo o sonho atribuído a São João Bosco, ainda no século XIX e que faz parte do imaginário de Brasília desde os anos de sua fundação – sonho enganoso, como se vê. Na próxima semana vamos prosseguir com este assunto, até porque há divergências nas estatísticas sobre o total da população de rua em Brasília
Continue Lendo “O sonho de Dom Bosco: o povo de rua no DF ainda procura pela tal fonte de “leite e mel””