Da violência nos serviços de saúde

[Texto em parceria Flavio Goulart e Henriqueta Camarotti]

Lê-se no Correio Braziliense (e não o é a primeira vez que se ver este tipo de notícia) que pacientes irritados com a demora no atendimento na UPA do Recanto das Emas depredaram a unidade, desencadeando também uma briga com vigilantes que tentavam conter o tumulto. O saldo foi de portas quebradas, equipamentos jogados no chão, gritaria e desespero, com um segurança agredindo um homem que supostamente segurava no colo uma criança autista. Um ou dois dias depois disso, ouço notícia na CBN sobre a agressão sofrida por uma professora, por parte da mãe e da avó de uma criança, dentro da sala de aula de uma escola pública aqui no DF. Diriam alguns que isso é o resultado do acúmulo de falhas que não só tais estabelecimentos, mas os serviços públicos como um todo apresentam, despertando a justa ira da população. Outros, entretanto, responsabilizariam os próprios usuários, que seriam incapazes de compreender as dificuldades dos serviços e mesmo a lógica de atendimento, partindo para a agressão física contra pessoas que estão ali para ajudar. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Acontecimentos assim exigem um mínimo de reflexão, principalmente por serem repetitivos, sem perder de vista a necessária isenção de ânimo. Vamos lá…

Olhando por dentro os serviços públicos, convenhamos, pelo menos na saúde, o ambiente é pouco receptivo, aqui em Brasília e alhures. Na porta de entrada de qualquer unidade do SUS há cartazes negando uma série de coisas, desde consultas nesta ou naquela especialidade, passando por falta de vacinas, medicamentos e atendimento médicos básicos; dias restritos de atendimento e por aí vai. Ao entrar na unidade, o cliente depara com salas de espera lotadas e dificuldades diversas de se entender com algum responsável, mesmo para responder dúvidas banais. Costumeiramente, o chão nem sempre está limpo; não existe um bebedouro decente; os banheiros são hediondos; as cadeiras de espera, quando disponíveis, estão colocadas de forma que aos eventuais assentados é dado ver apenas a nuca das pessoas na fileira da frente, de forma a dificultar qualquer comunicação. Ouvi alguém dizer, certa vez, que assim é melhor, pois os que esperam ficam mais atentos aos chamados parede-a-dentro. Parece ser esta a lógica vigente. E como se não bastasse, um onipresente cartaz lembrando que “maltratar funcionário público é crime”.

Diante de coisas assim, convenhamos, fica difícil alguém se sentir acolhido e respeitado. Mas é claro que isso não se justifica a ninguém que parta para o quebra-quebra e agressões físicas e verbais à equipe de funcionários. Sem entrar diretamente no mérito de tais questões, até mesmo porque nos faltam informações precisas, o certo é que a receptividade em tais ambientes deixa muito a desejar. De um lado da mesa, ou seja, da parte das equipes, mesmo que a maioria dos servidores aja com correção, não é rara a ocorrência de desatenção aos pacientes, além de restrição da informação e omissões diversas. São frequentes os casos de pessoas que provêm não só do DF, mas também de cidades do Entorno, com consultas marcadas com bastante antecedência, serem devolvidas à origem, sem atendimento – e sem maiores explicações. Isso porque é comum o fechamento intempestivo das unidades, sem aviso prévio, seja para treinamentos, obras, dedetizações, paralizações trabalhistas, além de “etc” dos mais variados.

Assim, é preciso refletir cada vez mais na marcante exacerbação do sofrimento humano, sobretudo do psíquico com especificidades importantes nas comunidades com baixo poder aquisitivo. Nesse sentido, os problemas atingem diretamente todos os usuários do sistema de saúde e educação, seja no público ou no privado. Não há área de interação humana em que não acorram pessoas desesperadas, tensas, ansiosas, angustiadas, maltratadas pelo descaso de uma sociedade perversa baseada na competição, violência, exclusão e desigualdade.

Apesar do avanço da medicina e das áreas da saúde, não há exagero em afirmar que muitos de seus demandantes estão doentes, não apenas em decorrência de doenças orgânicas, mas também pelo sofrimento psíquico, pessoal, familiar e social. Tudo isso, é claro, se associando aos impactos na vida social em um país que não cuida dos seus cidadãos, pelo menos como deveria e poderia cuidar. Há de fato por aqui uma forma de desespero existencial, associado a falta de sentido, revolta, indignação e sentimentos profundos de impotência e desesperança.

É preciso ainda acrescentar que a sociedade atual caminha em direção a um fenômeno de todos-contra-todos, fazendo com que, por mínimas coisas, brote à revolta, sentimento de ser explorado, injustiçado, prejudicado e explosões de emoções agressivas de toda natureza. Fatos assim, como revelados no preâmbulo deste texto, revelam algo com a ponta de um iceberg e é importante entender a complexidade de tal fenômeno, que perpassa a todos nós. Em outras palavras, a violência que brota aqui e ali não deixa de ser um sintoma de algo que, na verdade, atinge a todos.

As pesquisas sobre o comportamento e a neurociência apontam que, na situação de tensão generalizada vivida pelos grupos humanos, o sistema de alerta cerebral está em permanente estado de prontidão, pronto para disparar, descarregando no sistema neurovegetativo, já em frangalhos, a liberação desregulada do cortisol, hormônio do estresse, catecolaminas e disseminação das moléculas da emoção pelo hipotálamo. Tudo isso anulando uma capacidade natural de cooperação, compreensão e compassividade entre as pessoas. É como se a humanidade estivesse se confrontando com um estado de sobressalto permanente, com os sistemas orgânicos no limite da capacidade de se refazer diante da rotina da vida, ainda mais diante de acontecimentos violentos e traumatizantes.

Chama atenção, ainda, o fato de que crianças e jovens, vivendo em tal ambiente social, estão sendo prejudicadas por uma educação muitas vezes permissiva, sem limites, não suportando frustrações e com a incapacidade de lidar com dificuldades, por mínimas que sejam. Em suma, é como se todos quisessem ter razão, com zero compreensão e tolerância em termos de convivência social.

Há de fato, no fundo de tudo isso, uma série de questões de natureza cultural. Essa última palavra costuma ser utilizada para justificar a ausência de ações concretas diante de determinada situação, já que costuma ser interpretada como uma barreira de difícil (se não impossível) transposição. Vamos cuidar para que isso não nos embargue a argumentação agora.   

O que fazer, então? A pergunta que se impõe todos os dias é: como começar a reverter esse estado de caos e de naturalização da violência que está se instalando, sem exceção, em todos os grupos, culturas e níveis sociais? De fato, existem medidas que podem ser tomadas, a partir de decisão dos próprios serviços, sendo que algumas mais imediatas e exequíveis, com foco nos serviços, podem ser lembradas.

Primeiramente que a sociedade tome consciência da necessidade urgente de assumir uma postura mais pacifica desde os ambientes domésticos-familiares, no trabalho, nas relações com o público, nas ruas, no trânsito, nos serviços públicos, entre outros.

Pensando de forma mais larga, caberia também a promoção de movimentos locais, regionais e nacionais de pacificação das relações, começando pelas escolas, instituições de saúde e de segurança, de forma que cada pessoa usuário ou prestador de serviço, se sinta co-partícipe da construção de uma Cultura de Paz.  

Quem trabalha com saúde, não só no campo público como no privado, deve, primeiramente, conhecer e estar em total sintonia com o determinante legal de que a saúde é um direito de todos, como está na Constituição. Deste princípio derivam todos os outros. Tais pessoas possuem diferenças marcantes dos trabalhadores em escritórios, fábricas, ou comércio em geral, pois está lidando com pessoas em sofrimento, dores físicas e emocionais, além de serem portadores de um direito inalienável que é a saúde. Para tanto, deve existir para estes trabalhadores, do porteiro ao médico, da recepcionista à enfermeira(o), algum tipo de qualificação além dos componentes técnicos. Isso significa que além de operar equipamentos, colher entrevistas e anamneses, medir pressão, prescrever tratamentos, aplicar vacinas, esterilizar objetos, organizar a demanda de pacientes, etc devem acumular outras capacidades, de natureza pró ativa e pacificadora

Ao mesmo tempo é necessário introduzir novas visões e despertar reflexões sobre a vasta simbologia que envolve o campo da saúde, o que pode ser feito através de rodas de conversas ad hoc, voltadas à partilha de problemas vivenciados no trabalho e suas possíveis soluções. Isso ganharia ainda mais substância com o convite a profissionais das várias áreas humanas, enriquecendo a compreensão da saúde como campo também humanístico e filosófico, por exemplo, na integração das equipes mediante técnicas de melhora do estresse e das tensões.

É importante que as atitudes relativas a tal tipo de compromisso, no plano simbólico e subjetivo, mais do que técnico, sejam rigorosamente supervisionadas e se houver faltas, que estas sejam apontadas e corrigidas – e se for o caso, punidas. Boa regra, aliás, diante disso é a seguinte: estimular os comprometidos com o sentido do trabalho na saúde, motivar os omissos e desencorajar os maus profissionais, porque habitualmente no serviço público em geral, não apenas na saúde, não costuma distinguir essas diferenças de atitude e nem focar no cuidado das equipes de trabalho.     

Humanizar os processos de atendimento é outra iniciativa a considerar. Com efeito, serviços de saúde, de qualquer porte ou natureza, não podem ser aqueles lugares impessoais, com cheiros desagradáveis e cores tendendo ao cinzento e há que realizar intervenções arquitetônicas e paisagísticas neste sentido. Enquanto isso não é incorporado de forma taxativa à cultura da saúde em nosso meio, cabe às equipes imaginar e executar pequenas intervenções, por exemplo, nas atitudes receptivas por parte de todos; em proporcionar salas de espera amigáveis; na criação de detalhes decorativos; na retirada de cartazes taxativos, agressivos ou de proibição; na higiene e na limpeza dos ambientes etc.

Assim, por exemplo, mesmo uma pequena flor natural ou artificial, na mesa de cada atendente ou profissional já representa um passo. Da mesma forma, caberá sempre um “bom dia”, “até breve”, “se cuide”, ditos de forma empática e interessada, assim como um olhar acolhedor diretamente nos olhos e perguntas que demonstrem interesse personalizado, tais como: “como tem passado”, “que projetos tem para o futuro”, “como vai a família”, “há quanto tempo você não aparece por aqui!”, “estamos com saudades”.

A promoção de bate-papos ou rodas de conversa, em salas de espera também é um bom costume, não necessariamente apenas de “aulas” na educação para a saúde, mas em brincadeiras de relaxamento, apresentação entre os participantes, aspectos em que o arsenal da Terapia Comunitária Integrativa (ver link) é de grande ajuda.

Deve ser valorizado, ainda, o convite a pessoas, especialistas formais ou praticantes informais, que atuam no campo comportamental humano e nas relações sociais, tais como psicólogos, psiquiatras, sociólogos, filósofos, agentes religiosos, pedagogos, terapeutas ocupacionais, professores de educação física e de meditação e pessoas que superaram obstáculos em sua saúde, e que podem funcionar como multiplicadores da resiliência. Estes não precisam fazer parte direta da equipe, mas o convite esporádico aos mesmos certamente fará diferença positiva.

Não esquecer também, que é essencial uma boa condução e gestão nos serviços, com atributos de capacidade de tomada de decisões, liderança, carisma, espírito empreendedor, embasamento ideológico, além de qualificação técnica e continuidade. Mas uma boa condução teria pouco a oferecer se não contasse com boas equipes, nas quais deve estar presente a qualificação técnica e humanística, além promoção de respeito ao outro nas discussões, criatividade, capacidade na tomada de decisões, aceitação da liderança. Tudo isso deve se somar a boas práticas sociais, traduzidas: por equilíbrio e sintonia entre as propostas de participação; associação sinérgica entre as noções de responsabilidade pública e de direito à saúde; bem como a garantia resultados concretos derivados de tais práticas.

Sobre os usuários, particularmente aqueles que perdem a paciência e botam pra quebrar – o que pode ser feito? Freud explica o fato através das chamadas pulsões dos seres humanos, mas não entraremos neste campo agora. Uma coisa é certa, todavia: quando o atendimento é bom de fato, além de aberto à participação dos usuários, sendo as pessoas ouvidas de fato, tais pulsões talvez sejam mais facilmente (e suavemente) contidas.  

Nada de extraordinário, como se vê. São pequenas coisas realmente, mas pensando bem, não existe nenhum rio que já nasça grande… 

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